2015 foi declarado pelas Nações Unidas como o Ano Internacional dos Solos. O tema é reconhecido pelos especialistas como fulcral enquanto base para a segurança alimentar, mas também na preservação de ecossistemas, incluindo a adaptação e mitigação a alterações climáticas. O Agronegócios falou com Nuno Canada, presidente do conselho diretivo do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) e com Mário Carvalho, professor catedrático da Universidade de Évora (UÉvora), sobre o tema. Deixam alertas e partilham angústias que, a médio prazo, caso não sejam tomadas medidas, é o futuro da Humanidade que está em perigo.
Nuno Canada, do INIAV, considera de «grande importância» a designação, pela 68.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, de 2015 como o Ano Internacional dos Solos, com a missão de «aumentar a consciencialização e compreensão da importância do solo para a segurança alimentar e funções essenciais dos ecossistemas».
Deste modo, «é possível dar visibilidade a um recurso natural, muitas vezes ignorado, e transmitir, à sociedade em geral, a mensagem de que o solo é a base para a alimentação de todos os povos do mundo, sendo nele que reside a capacidade de garantir a segurança alimentar para todos», adianta Nuno Canada.
Nas palavras de Claire Chenu, um dos representantes da FAO para o Ano Internacional dos Solos, lembra Nuno Canada, «a segurança dos solos está fortemente interligada com a segurança alimentar e da água, necessidades energéticas, regulação das alterações climáticas e proteção da biodiversidade. Tekalign Mamo Assefa, igualmente representante da FAO para o Ano Internacional dos Solos, afirma, por outro lado, que desde os anos 80 do século passado a degradação dos solos aumentou em cerca de 30% a nível mundial e que, só em África, se estima que cerca de 65% dos solos aráveis se encontrem degradados».
O presidente do INIAV diz que, a nível global, o Ano Internacional dos Solos, «é uma oportunidade sem precedentes para consciencializar a opinião pública em geral e as classes políticas em particular da importância do solo e do seu uso de forma sustentável».
Em Portugal, a efeméride «é também uma oportunidade única para, através das comemorações promovidas por diversas entidades, dar cumprimento à missão e objetivos definidos pela ONU para este ano de 2015, promovendo a consciencialização da sociedade civil e decisores políticos da importância do solo e fomentando, designadamente, o investimento em atividades de gestão sustentável daquele recurso natural, bem como o reforço da capacidade de recolha de mais informação sobre os solos nacionais e da sua divulgação pública», sublinha o responsável.
Medidas que consciencializem as populações
Para Nuno Canada, a conservação do solo «tem vindo a constituir preocupação crescente» das entidades oficiais, bem como de investigadores, técnicos e agricultores, «embora consideremos que ainda se está longe de, como refere, “tratarmos bem os nossos solos».
«Pese embora a existência de diversa legislação de carácter agroambiental em vigor, cujos objetivos são, para além de regular o uso de fatores que podem interferir na conservação do solo e da água, fomentar a implementação de boas práticas que previnam a sua degradação, consideramos fundamental a tomada de medidas que permitam consciencializar as populações que o solo é um recurso finito, sujeito a rápida degradação, não sendo renovável à escala do tempo da vida humana. Um mau uso pode fazê-lo desaparecer em poucos anos», alerta o responsável.
Acresce, ainda, «que sendo um património a transmitir às gerações futuras importa protegê-lo, de modo a permitir a produção de bens alimentares saudáveis e que garantam a segurança alimentar de todos em anos vindouros».
Nuno Canada recorda que a Estratégia do Ministério da Agricultura e do Mar para a Investigação e Inovação Agroalimentar e Florestal, no período 2014-2020, publicado em 2014, «identifica os principais eixos de intervenção e apresenta os programas a executar para a concretização de objetivos específicos, privilegiando, entre outros, o desenvolvimento de boas práticas culturais agrícolas e florestais que promovam a mitigação das alterações climáticas e uso eficiente da água».
No que ao solo diz respeito «são também propostas as linhas orientadoras para o reforço das capacidades de ciência e tecnologia no domínio da conservação do solo e da água e da fertilização racional das culturas, visando melhorar a fertilidade dos solos nacionais e a promoção de práticas agrícolas que visem a sua conservação e/ou recuperação», acrescenta o presidente do INIAV, lembrando que «é também considerado o desenvolvimento de modelos e estratégias de defesa da floresta contra incêndios – fator de grande relevância na degradação do solo -, integrando as diferentes valências do setor agrário».
Sobre a criação da Parceria Portuguesa para o Solo, uma iniciativa conjunta da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) e da Sociedade Portuguesa da Ciência do Solo (SPCS), à qual se têm vindo a associar outras instituições, como o INIAV, Nuno Canada realça que a mesma «assume um caráter vital para a salvaguarda da qualidade dos solos nacionais pois, permitirá “congregar os esforços de múltiplas entidades empenhadas na administração, no uso e na gestão sustentável do solo, bem como na promoção do seu conhecimento e na divulgação e sensibilização da sociedade para a importância vital deste recurso”».
Relembra ainda a importância da Parceria «como meio de suporte técnico-científico, aos decisores, no âmbito da definição de políticas nacionais (e também europeias) relacionadas com o solo».
Sobre a questão alimentar, Nuno Canada sustenta que «a consciencialização da importância do solo agrícola e florestal como garantia da produção de alimentos e da segurança alimentar das gerações futuras, passa pela proteção e defesa do solo contra as atuais ameaças, consequência, a maior parte das vezes, do seu uso inadequado».
Importa, por isso, «garantir uma aprendizagem permanente dos seus utilizadores sobre as boas práticas a considerar, a transferência do conhecimento que vai sendo adquirido para os seus utilizadores finais, a orientação dos estudos a realizar para o seu uso sustentado, prevenindo a concretização das principais ameaças do solo – empobrecimento em nutrientes, erosão, compactação, salinização, sodização, perda de matéria orgânica e selagem – de modo a transmitir às gerações futuras solos saudáveis para a produção de alimentos saudáveis e que garantam a sua segurança alimentar».
Neste processo, «consideramos que seria necessário introduzir nos programas escolares as noções básicas relativas à proteção e prevenção da degradação dos solos, de modo a sensibilizar os mais pequenos para estas questões». E mais, diz: «importa, igualmente, retomar as atividades de extensão rural e de formação profissional dos utilizadores do solo, com particular apoio aos jovens agricultores».
Por fim, Nuno Canada diz que, no final das celebrações do Ano Internacional dos Solos, «seria ainda desejável que a importância atribuída ao solo não se esgotasse em dezembro de 2015 e que este ano de celebrações fosse o ponto de partida para unir vontades e prosseguir as ações desenvolvidas no âmbito das celebrações».
Recorde-se que no INIAV existe um grupo de investigadores e técnicos que, ao longo dos anos, tem vindo a promover estudos, em colaboração com outras entidades públicas e privadas, que, de um modo geral, visam a conservação do solo (e da água, porque relacionada), e a melhoria do seu estado de fertilidade.
«Tem sido igualmente preocupação o estudo e a caracterização dos solos nacionais, tendo sido criada uma base de dados sobre as propriedades dos solos a disponibilizar para consulta a todos os interessados», conclui Nuno Canada.
Uma questão essencial para a Humanidade
Mário Carvalho, professor catedrático da Universidade de Évora, começa por dizer que «o aumento da população mundial, assim como a melhoria das condições económicas de vastas regiões do mundo, nomeadamente na Ásia, criam uma grande pressão sobre a necessidade de aumentar a produção mundial de alimentos».
«A intensificação da produção agrícola, especialmente nos países industrializados a partir da chamada revolução verde, levantou grandes problemas ambientais, ao ponto da política agrícola de vastas regiões, como é o caso da UE, apontarem para a necessidade de uma redução da incorporação de fatores, numa nova perspetiva da produção agrícola designada por intensificação sustentável, mas que acarreta perda da produtividade da terra. Um terceiro ponto a considerar é que o solo agrícola é um recurso não renovável, que os melhores solos já estão atualmente em uso e todos os anos se perdem áreas de solo agrícola por fenómenos de erosão, perda de matéria orgânica e compactação, para além de todas as áreas de bons solos agrícolas que ficam todos os anos irremediavelmente comprometidas pela expansão e dispersão urbanas, e que não voltarão a poder ser usadas para fins produtivos», explica.
Mário Carvalho refere que «a degradação dos solos agrícolas não representa apenas um problema para a produção de alimentos mas também tem um enorme contributo para a emissão de gases com efeito de estufa e para a contaminação do recurso água. Assim sendo, é evidente que a conservação e melhoria da qualidade dos solos agrícolas é uma questão essencial para a Humanidade e daí a importância do Ano Internacional do Solo, como forma de lançar o alerta a toda a comunidade sobre a necessidade de preservarmos este recurso».
No caso concreto de Portugal, «o recurso solo sofre ameaças particulares, resultantes do nosso clima e condições topográficas. A grande concentração de chuva no outono/inverno e o relevo acentuado do território aumentam muito o risco de perda de solo por erosão. O clima quente favorece a mineralização da matéria orgânica, o que associado aos sistemas tradicionais de exploração da terra, que poucos ou nenhuns resíduos orgânicos deixam no terreno, também contribuem para a baixa fertilidade da generalidade dos solos portugueses».
O também investigador integrado do Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas da UÉvora, realça que «a chamada de atenção para a necessidade de cuidarmos deste recurso em Portugal faz todo o sentido. Não só os decisores políticos, os técnicos e os responsáveis pela gestão do solo em cada sistema produtivo, como toda a sociedade deve ser sensibilizada para a fragilidade e necessidade urgente de cuidar melhor deste recurso fundamental, que não nos devemos esquecer é não renovável».
Mais proteção
Mário Carvalho é claro quando perguntamos se Portugal tem tratado bem os nossos solos. «Não. De uma forma geral, a proteção e melhoria do solo não tem feito parte das preocupações dos decisores e produtores em Portugal».
«Os sistemas de mobilização do solo praticados são muito intensos, promovendo as perdas de solo e matéria orgânica por erosão e mineralização. O retorno de resíduos orgânicos ao solo, sejam sobre a forma de estrumes ou palhas das culturas é uma prática pouco frequente entre nós, o que agrava o problema. Os sintomas de erosão e degradação do solo são uma constante de Norte a Sul do País e são poucas as pessoas verdadeiramente preocupadas com a situação e ainda menos as que procuram soluções para os problemas», considera, adiantando que «o país funciona muito por modas e por imposições comunitárias, sendo que «neste momento há um grande enfoque na biodiversidade e na proteção da água».
«São aspectos muito importantes. Mas a proteção do solo é bem mais urgente e importante e não recebe, nem de perto nem de longe, a mesma atenção. Veja-se o caso da floresta. Na certificação florestal restringe-se de forma muito acentuada o uso de herbicidas para o controlo da vegetação espontânea, com o objetivo de proteger o recurso água. Como alternativa é necessário aumentar o recurso à mobilização do solo, que é a principal causa da sua perda por erosão. E a ironia é que a principal causa da poluição da água, com origem nas atividades agrícolas e florestais, são os materiais transportados no processo erosivo pelo que, no final, não beneficiamos nenhum dos dois recursos», alerta o docente da UÉvora.
Por tudo isto, Mário Carvalho considera «necessário e urgente trazer o solo para o centro da política agrícola em Portugal». E lembra: «num recente artigo escrito por Francisco Cordovil (Desenvolvimento, Território e Política agrícola – Portugal 2015 – 1ª parte, Minha Terra nº18 de Junho de 2015) não pode deixar de nos preocupar a todos. O valor acrescentado (VAB) da agricultura do Continente, entre 200 e 2011 diminuiu 26%, a progressão dos preços dos consumos intermédios (32%) superou os da produção (14%), pelo que a dependência do rendimento agrícola dos subsídios passou de 20 para 30% no mesmo período».
«Para inverter esta situação temos que concertar esforços numa política de proteção e melhoria dos nossos solos que assente em três vertentes: proteção contra a erosão, aumento do teor de matéria orgânica e melhoria da drenagem. E a alteração climática prevista para a região (aumento da temperatura, aumento da precipitação de outono e redução na primavera e aumento da frequência de eventos extremos) só vem realçar a importância de todos estes aspetos. Uma mudança de paradigma da definição da política agrícola e florestal é fundamental, de forma a privilegiar uma estratégia de longo prazo para o país e a minimizar a dependência de orientações de curto e médio prazo da política europeia», considera Mário Carvalho.
«Passar do discurso à prática»
Sobre a Parceria Portuguesa para o Solo considera que «tudo o que servir para alertar para a importância da proteção do solo é bem-vindo». «O meu receio é o de que fiquemos por este tipo de ações, quando verdadeiramente o problema acontece e tem de ser resolvido ao nível da parcela, onde cada produtor agrícola desenvolve a sua atividade», vinca.
Mário Carvalho diz que a sociedade em geral «está pouco sensibilizada para o problema». «Somos todos os dias bombardeados com problemas de proporções cataclísmicas pelos meios de comunicação social: são as ameaças o terrorismo mundial, do armamento nuclear, das alterações climáticas, das pandemias, da resistência aos antibióticos, das substâncias cancerígenas, que coitadinho do solo passa completamente despercebido no meio de toda esta vaga. Mas isso será natural. O que é verdadeiramente grave é que no meio agrícola, decisores, técnicos e produtores, são muito poucos os que verdadeiramente estão preocupados com o assunto e ainda menos os que estão a atuar», argumenta.
O professor universitário realça ainda que, para a agricultura portuguesa, os aspetos mais importantes são o que referi anteriormente (proteção contra a erosão, aumento do teor de matéria orgânica e melhoria da drenagem)».
«A questão é de facto passar do discurso à prática. A principal limitação a uma adoção, por parte dos produtores, de uma série de tecnologias de produção capazes de resolver todas estas questões é o acesso ao conhecimento. É que não basta saber que se tem de mudar, é preciso saber como. E não basta mudar o sistema de mobilização do solo, pois será necessário adaptar todo o itinerário técnico a esta nova realidade, como a rotação de culturas e a gestão dos resíduos e inimigos das culturas. E em relação a este capítulo nada está a ser feito, antes pelo contrário, estamos a regredir», afirma.
Para Mário Carvalho, o grande problema da alteração da tecnologia de produção agrícola «é que o conhecimento não pode ser importado, uma vez que os resultados dependem das condições locais».
«É assim necessário conduzir uma investigação aplicada que, pela força da sua natureza, tem de estar distribuída no território. Mas sendo o campo agrícola um ecossistema muito complexo e a recuperação do solo um processo lento, a investigação a desenvolver tem de ser multidisciplinar e de longa duração. Em terceiro lugar, a transmissão do conhecimento em agricultura, tem de ser feita cara a cara, pelo que é necessário um corpo técnico especializado, de nada servindo ao agricultor o artigo científico (de preferência numa revista internacional) que o investigador possa escrever. Este corpo técnico deve assim estar no terreno, estar em contacto próximo com os produtores, conhecer as suas dúvidas, limitações, capacidades, e partilhar a sua experiência, de forma a melhor poder adequar o seu discurso e a sua ação para de facto poder ser transmissor de informação», salienta.
Mário Carvalho conclui dizendo que «nada disto existe em Portugal e a política vigente de há muito tempo a esta parte, pelo menos desde que entrei na carreira há 36 anos, tem vindo a agravar o problema».
«Para além do acesso ao conhecimento é preciso desenvolvermos, no âmbito de segundo pilar da PAC, medidas agroambientais coerentes e estáveis no tempo, complementadas com incentivos à produção. Neste momento até existem medidas de visam a proteção e melhoria do solo, mas temo pela sua eficácia, não só pelo problema do acesso ao conhecimento, mas por estarem diluídas numa grande variedade de outras medidas, algumas delas contraditórias. Muitas das medidas agroambientais não passam de uma forma encapotada de apoio ao rendimento dos agricultores, sem nenhum potencial de verdadeira transformação do processo produtivo», remata.
Fonte: http://www.agronegocios.eu/
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